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Endossimbiose
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  Organizar a evidência
Na altura em que Margulis propôs a sua versão da hipótese endossimbiótica, a visão dominante na comunidade científica era de que as mitocôndrias e estruturas semelhantes tinham evoluído passo-a-passo a partir de outras partes da célula. Então, como é que Margulis apresentou a sua ideia? Todos os argumentos científicos funcionam da mesma forma: pensa-se no que esperamos ou prevemos que se observe numa dada situação se a hipótese for verdadeira, e depois confirma-se se essa expetativa (ou previsão) corresponde à realidade. Se sim — e se mais nenhuma hipótese gerar a mesma expetativa — a ideia é suportada; se não, é rejeitada. A maior parte das hipóteses e teorias científicas geram muitas expetativas, todas dizendo respeito a diferentes linhas de evidência que podem ou não suportar a ideia.

hipóteses endossimbiótica vs passo-a-passo

Vamos ver quais as expetativas que a hipótese endossimbiótica gerava que a teoria passo-a-passo não gerava. Apesar da hipótese de Margulis ser sobre mitocôndrias, estruturas tubulares e plastídeos (por exemplo, o cloroplasto), vamo-nos focar inicialmente nas mitocôndrias.

Se as mitocôndrias evoluíram a partir de uma bactéria independente engolida por outra bactéria, então seria de esperar:

  1. Que as mitocôndrias se reproduzissem independentemente e passassem dos progenitores para os descendentes
    As bactérias reproduzem-se individualmente, não são criadas a partir de outro organismo. Assim, se as mitocôndrias fossem descendentes de bactérias, seria de esperar que se reproduzissem individualmente — e não que fossem geradas a partir de outras estruturas da célula a cada nova geração. A própria Margulis tinha observado a forma como as mitocôndrias se reproduzim dividindo-se ao meio. E outros cientistas tinham publicado acerca de observações destas novas mitocôndrias a serem divididas entre duas células-filha, aquando da divisão da célula hospedeira. Não havia dúvidas de que as mitocôndrias preenchiam esta primeira expetativa. Por enquanto, tudo bem!

    divisão mitocondrial

    Uma mitocôndria numa célula de borboleta prepara-se para a divisão.

  2. Que as mitocôndrias tivessem o seu próprio material genético
    Todos os organismos têm material genético, por isso, se as mitocôndrias tivessem sido, inicialmente, bactérias, deveriam ter o seu próprio ADN. Assim como Margulis tinha ido procurar o ADN nos cloroplastos da Euglena, outros cientistas procuraram por ADN nas mitocôndrias — e encontraram-no! As mitocôndrias iam ao encontro da segunda expetativa de Margulis.

  3. Que o ADN mitocondrial codificasse as características das mitocôndrias
    Se o ADN mitocondrial corresponder ao que antes era o ADN bacteriano, seria de esperar que codificasse características específicas das bactérias antecessoras (ex.: utilização de oxigénio para degradar os alimentos) — características que o ADN do núcleo não codifica. Mas como se percebe se uma característica é codificada pelo ADN mitocondrial ou nuclear? Margulis pensou em dois testes:

    Teste nº1: O método mais simples seria remover as mitocôndrias e perceber se a característica (ex: produção de uma determinada proteína para degradar os alimentos) ainda existe na célula. Infelizmente, a maior parte das células não sobrevive à remoção das mitocôndrias e isso torna difícil perceber se há características em falta ou não. Para as mitocôndrias, pelo menos, este teste foi inconclusivo.

    Teste nº2: O segundo teste baseava-se na forma como as características são herdadas. Mendel conseguiu prever quais as características da descendência porque, na maioria dos casos, a descendência herda metade do material genético de cada progenitor. No entanto, em alguns organismos multicelulares, as mitocôndrias são herdadas apenas de um progenitor — normalmente da mãe. Isto acontece porque as mitocôndrias são geralmente herdadas apenas do óvulo e não do espermatozoide. Isto significa que se algumas características específicas (por exemplo, a utilização de oxigénio para degradar os alimentos) estão codificadas no ADN mitocondrial (e não no ADN nuclear), estas características devem ter padrões de hereditariedade maternos invulgares. Outros cientistas tinham já descoberto estas características. O síndrome de Kearns-Sayre foi investigado muito depois de Margulis ter proposto a sua hipótese, mas é um bom exemplo deste tipo de características. Este síndrome é uma doença genética rara causada por uma diminuição da capacidade das células em obter energia a partir dos alimentos. Quando os cientistas estudaram os padrões de hereditariedade desta doença, descobriram que era apenas transmitida pela mãe — tal como seria de esperar, se o gene que causa esta doença estiver localizado no ADN mitocondrial. Evidências reunidas mais tarde também apoiaram esta ideia de que o gene deste síndrome se encontra no ADN mitocondrial. Margulis sabia da existência destas características herdadas pela mãe. Para além disto, estas são características que estão, aparentemente, relacionadas com o papel das mitocôndrias na célula. Estas eram evidências fortes que suportavam a ideia de que algumas características estão apenas codificadas no ADN mitocondrial. As mitocôndrias passaram neste teste também!

    o ADN mitocondrial é herdado a partir da linhagem materna

    Ao contrário do que acontece com o ADN nuclear (à esquerda), o ADN mitocondrial (à direita) só é herdado a partir da linhagem materna — uma particularidade que permitiu que Margulis determinasse se o ADN mitocondrial codifica características específicas.
     

  4. Que as mitocôndrias tivessem parentes bacterianos; as mitocôndrias seriam mais parecidas com bactérias do que com a célula onde se encontram
    Se as mitocôndrias evoluíram a partir de bactérias, deveriam ter bactérias como parentes longínquos. Mas como poderiam os cientistas perceber quem seriam estes parentes? Características como sequências longas de ADN, um órgão complexo ou um processo bioquímico complicado são geralmente bons indicadores de relações evolutivas. Se dois organismos apresentarem a mesma característica complexa, é muito mais provável que a tenham herdado de um mesmo antecessor do que essa característica ter evoluído, por acaso, em duas linhagens distintas.

    Margulis não teve de procurar muito até encontrar um grupo de bactérias que encaixasse no perfil. As bactérias aeróbias partilhavam características complexas e essenciais com as mitocôndrias — a capacidade de utilizar oxigénio para degradar as moléculas dos alimentos. As mitocôndrias e estas bactérias até usam os mesmos passos bioquímicos no processo! As bactérias aeróbias eram o candidato perfeito para parentes das mitocôndrias.

    bactérias aeróbias
    Imagem © Dennis Kunkel Microscopy, Inc. (www.denniskunkel.com)

    Bacillus atrophaeus, bactéria aeróbia em forma de bastonete.

veja também



Imagem das mitocôndrias em divisão © Rockefeller University Press, 1970; publicado originalmente em Journal of Cell Biology 47:373-383.

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